Os contribuintes têm conseguido repassar à União e Estados gastos com a contratação de seguro garantia e carta de fiança utilizados para assegurar valores discutidos em execuções fiscais. A nova tese já foi aceita pelos Tribunais de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e do Rio de Janeiro (TJ-RJ) e também pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 5ª Região, com sede em Recife.
O seguro garantia e a carta de fiança são alternativas ao depósito dos valores em discussão, geralmente milionários. Os gastos com esses produtos, porém, são consideráveis pelo fato de a garantia ser exigida durante todo o tempo de tramitação da execução fiscal - que dura em média oito anos, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Um seguro garantia custa de 0,5% a 2% do valor do débito por ano, a depender da seguradora. No caso da carta de fiança, os valores são ainda maiores. Variam de 4% a 5% sobre o montante discutido na execução fiscal.
Na Justiça, os contribuintes alegam que esses gastos devem ser considerados despesas processuais e serem pagos pela outra parte, conforme o Código de Processo Civil (CPC). Segundo o parágrafo 2º do artigo 82 e o artigo 776, o vencido deve pagar ao vencedor as despesas que antecipou. A determinação também está no artigo 39, parágrafo único, da Lei de Execuções Fiscais (nº 6.830/80).
União e Estados, contudo, alegam que não há previsão expressa para que seja feito esse ressarcimento. Acrescentam que foi escolha do contribuinte garantir a dívida com o seguro garantia ou a carta de fiança.
Em recente decisão, a 22ª Câmara Cível do TJ-RJ deu ganho de causa ao contribuinte. Assegurou o reembolso pelo Estado de R$ 2,1 milhões gastos com carta de fiança adquirida por uma empresa do setor de petróleo (apelação cível nº 0277301-41.2017.8.19.0001).
Em seu voto, o relator, desembargador Carlos Eduardo Moreira da Silva, afirma que “não há como afastar sua natureza de despesa processual necessária ao desenvolvimento dos atos do processo, devendo o vencido e quem deu causa ao processo arcar com as despesas processuais adiantadas decorrentes da contratação e manutenção da carta de fiança”.
Segundo o advogado que assessora a companhia, Leonardo Martins, sócio do escritório Machado Meyer, para se defender judicialmente, a empresa teve que pagar altos valores para obter uma fiança bancária. “Agora nada mais justo do que [o Estado do Rio de Janeiro] ressarcir essas despesas”, afirma.
A Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro (PGE-RJ) defende, porém, que a contratação da fiança bancária é uma opção do executado. “Logo, se o executado voluntariamente decidiu contratar uma fiança bancária, deve ele - e exclusivamente ele - suportar as consequências desse ato, sem poder repassar o ônus de sua escolha ao Estado”, diz em nota. O órgão acrescenta que vai recorrer da decisão e que há precedente favorável ao Estado.
Em São Paulo, o Tribunal de Justiça também determinou o ressarcimento do valor gasto por contribuinte para garantir uma execução fiscal. A decisão beneficia uma empresa do setor de açúcar e etanol que atua na distribuição de combustíveis e foi autuada em cerca de R$ 9 milhões por tomar créditos de ICMS na aquisição de óleo diesel, por considerá-lo insumo.
Com a vitória, a empresa conseguiu recuperar os R$ 156 mil gastos com seguro garantia. De acordo com o relator do caso na 5ª Câmara de Direito Público, desembargador Francisco Bianco, “o valor desembolsado pela parte embargante, na contratação de seguro garantia, para a interposição de embargos do devedor, configura despesa processual, passível de ressarcimento” (processo nº 3001282-90.2021.8.26.0000). Ele cita na decisão precedentes de 2020 (entre eles, o processo nº 2166134-85.2020.8.26.0000).
Uma outra grande empresa na área de açúcar e álcool também conseguiu decisão favorável na mesma turma e com o mesmo relator, no fim de 2020. No caso, obteve o direito de receber de volta os R$ 393 mil investidos em custas processuais, incluindo um seguro garantia. O valor da execução fiscal era de R$ 16 milhões (processo nº 2236271-92.2020.8.26.0000).
Christiane Alvarenga, sócia do TozziniFreire Advogados, que representa as empresas nos processos julgados pelo TJ-SP, lembra que o artigo 9º da Lei de Execuções Fiscais obriga o contribuinte a oferecer uma garantia e que, normalmente, a Fazenda coloca obstáculos para aceitar outros bens como garantia. “A Fazenda admite apenas seguro garantia, carta de fiança ou dinheiro”, diz.
De acordo com ela, o artigo 84 do CPC trata de algumas despesas processuais, como indenização de viagem, a remuneração do assistente técnico e a diária de testemunha. Mas, acrescenta, juristas afirmam que esse rol não é taxativo, mas exemplificativo.
A PGE-SP afirma por nota que “alinha seu entendimento à jurisprudência que se posiciona no sentido de que as despesas da parte com seguro garantia ou fiança bancária não são passíveis de ressarcimento, pois não estão abrangidas pelo conceito de despesas processuais”.
No TRF da 5ª Região, a decisão foi obtida por multinacional francesa que atua no mercado de bebidas destiladas, champanhe e espumantes. O caso foi analisado pela 1ª Turma (processo nº 0800299-28.2018.4.05.8312). Advogada da empresa, Daniella Zagari, sócia do escritório Machado Meyer Advogados, afirma que a lei é clara ao estabelecer que o perdedor deve ressarcir todos as despesas do vencedor.
Em nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) diz que “o ato de contratação do seguro configura despesa extraprocessual, que não pode ser reembolsável, conforme jurisprudência atual do TRF da 3ª Região (SP e MS), bem como do TRF da 2ª Região (RJ e ES).
A discussão, segundo advogados, realmente não está pacificada. Em junho de 2019, a 3ª Turma do TRF da 2ª Região reformou uma das primeiras sentenças favoráveis à tese das empresas. O processo (nº 0000556-24.2010.4.02.5120) transitou em julgado - não há mais possibilidade de recurso.
Para o relator, desembargador Theophilo Antonio Miguel Filho, “o seguro é um contrato celebrado pelo executado e segurador para que este, mediante pagamento do prêmio pelo segurado/ executado, assuma o risco em caso de sucesso do exequente”.
Aline Braghini, do CM Advogados, afirma que as decisões recentes são excelentes para os contribuintes. “Tendo em vista que a despesa com seguro garantia configura evidente despesa processual, é justo e legítimo o reembolso”, diz.
Já Maurício Faro, do BMA Advogados, considera que as decisões adaptam à realidade o custo do litígio. “Partindo da premissa que a garantia é obrigatória, nada mais lógico que esse valor seja imputado ao ente público.”